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Dionísia

Adellunar Marge

Quando as primeiras uvas surgiram, ainda eram uvas selvagens. Ainda não haviam sofrido a interferência da mão dos homens que através da observação, provação e manuseio, aperfeiçoariam variadas espécies, dando-lhes nomes e catalogando suas qualidades. Disseminadas principalmente pelos gregos e pelos romanos, as uvas se difundiram pela Itália, França, Portugal, Espanha e dezenas de outras regiões, até migrarem para a América. Em cada região adquiria um status próprio, em razão do terreno e do clima, produzindo vinhos característicos daquela região e transformando-se no orgulho de cada comunidade que produzia esses vinhos. Algumas variedades de uvas são apenas para se degustar como frutos e outras, chamadas viníferas, são próprias para a produção do vinho, com teores alcoólicos variáveis e paladares e odores também diversos. As uvas que se prestam ao consumo como frutos in natura também são de espécies variadas e mesmo não se prestando à produção do vinho, satisfazem o paladar dos homens. São as parreiras, comuns em muitas casas, como na minha.

A parreira da minha casa tem as raízes fincadas em meu jardim e seus ramos, subindo pela parede, já contornam quase que por inteiro o terraço. Batizei-a, como Dionísia em homenagem a Dioníso, o malicioso e brincalhão deus grego da alegria e da liberdade de espírito.

Dionísia vem a ser bisneta da antiga e frondosa parreira que vicejava na casa dos meus pais, na rua desembargador Canêdo, a antiga Rua do Canto de inesquecíveis memórias. Dionísia não possui a nobreza das uvas de renome ou “vitis-viniferas”, como são chamadas, embora lhes guarde um parentesco, ainda que longínquo. As “vitis-viníferas” sim, transitam pela boca dos enólogos como Merlot, Cabernet, Malbec, as pequeninas e esnobes Pinot-noir dos afamados espumantes e tantas outras espécies que satisfazem o paladar dos apreciadores de vinho. A Dionísia é simples, comum, chamada apenas de parreira ou pé de uva, mas guarda em seus cachos negros como a noite (quando maduros) uma doçura inigualável. Jamais terá o seu espírito contido em um barril de madeira ou no cárcere de uma garrafa, esperando que um apreciador dos seus dons o liberte, como disse Baudelaire em seu poema , A Alma do Vinho: “…homem, deserdado amigo, eu te compus neste cárcere de vidro em que me abafas, um cântico de fraternidade e luz…” . Mas se Dionísia não se transmuda em vinho, deixa-se degustar como fruto e retribui com a doçura dos seus cachos.

A antiga parreira da rua do Canto que lhe deu origem teve origem em uma muda cedida gentilmente ao meu pai pelo senhor Emílio Filippini, nosso amigo e vizinho de origem italiana, há mais de sessenta anos. Com a cessão da muda o senhor Filippini forneceu as instruções para a sua manutenção, instruções que seguimos até hoje para as diversas descendentes daquela primitiva muda: “uva gosta de sombra no pé e sol nas folhas e deve ser podada duas vezes por ano: uma na primeira lua nova de março e a outra na primeira lua nova de agosto”. Assim eu faço e duas vezes por ano a Dionísia dá os seus generosos frutos, degustados não só por nós, os donos da casa, mas por gulosos morcegos durante as noites e por saíras, sanhaços e o casal de sabiás, assíduo freqüentador do nosso jardim.

Os braços da majestosa parreira já ocupam a frente e uma das laterais do terraço, enlaçando os arames estendidos com o abraço dos seus ramos para sustentar o peso das dezenas de cachos que, antes do Natal, já estarão maduros. Enquanto isso, esperamos. Nós… os pássaros… e os morcegos, para dividirmos a colheita.

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