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Os abutres e a carniça

Há momentos em que os homens se assemelham muito aos animais. Afinal, nós pertencemos ao reino animal e a racionalidade que nos distingue pode ser um tênue fio que, a qualquer momento, pode se romper, e aí… foi-se embora a diferença. A assimilação e a conservação dos valores, desde o berço, são os mecanismos para a constituição do nosso patrimônio moral. Um patrimônio capaz de transformar-nos em cidadãos de boa convivência social, afastando-nos da animalidade primordial. A partir daí passamos a entender a prevalência da essência sobre a existência, do ser sobre o ter. Não com a exclusão pura e simples de um ou de outro, mas em um universo de equilíbrio entre essência e existência. Não é assim o significado do termo universo? O uno no verso? A unidade na variedade?

Aí eu me lembrei do condor, a ave que reina nos céus da nossa América Latina.

O condor, que atende pelo nome científico de “Vultur gryphus”, é uma ave típica dos Andes, sendo símbolo nacional de vários países da América do Sul. É a maior ave voadora do mundo, tendo cerca de 3,20m de asa a asa e podendo cobrir cerca de 300 km de voo em um só dia. Em perigo de extinção, essa majestosa ave, que faz o seu ninho nas escarpas rochosas mais altas da cordilheira, põe um ovo só a cada ano. Raramente põe dois ovos, mas quando o faz, os dois filhotes lutarão até que um derrube o outro do ninho. A mãe observa a luta sem interferir. Um mistério da natureza para o aperfeiçoamento da espécie. Sobrevive o mais forte… o mais apto.

O condor domina aquelas alturas com o seu voo imponente, planando ao sabor do vento frio dos Andes, numa vigília incansável, observando com a sua visão aguda e profunda, a profundeza dos vales que se estendem aos pés da magnífica cordilheira. Aos olhos dos homens, o condor representa a imponência, a altivez.

Mas essa ave de porte magnífico, que domina os céus latino-americanos, planando no mais alto da montanha, de repente, movida por um impulso atávico, vislumbra do alto do seu voo os restos putrefatos de uma carniça no mais profundo do vale. É o bastante. Atendendo àquele chamamento interior, despe-se de sua majestade, amesquinha-se e atira-se em um mergulho alucinante em direção à carniça, dilacerando com as suas afiadas garras e o seu bico adunco, as entranhas do animal morto.

Há homens que se assemelham muito a essas aves de rapina e, movidos também por um impulso interior, esquecem a sua pertinência com o Criador e violentam os princípios da moral e da dignidade. Nesses momentos, o ser é sobrepujado pelo ter, a essência, pela existência.

Ortega, o eminente pensador espanhol, falava com propriedade que o homem é fruto das circunstâncias. “Eu sou eu e minhas circunstâncias…”, dizia. Entre essas circunstâncias estarão, é claro, a formação familiar, a escola e o próprio ambiente social em que se vive. Por isso, nossas escolhas não são livres. Escolhemos em função daquilo que somos e, dependendo das nossas escolhas, contribuímos para a construção de um mundo melhor ou pior para nós mesmos e para aqueles que virão depois de nós.

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