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Uma canária muito estranha

Houve um tempo em que era muito comum a criação e a manutenção de pássaros em gaiolas. As leis e o sentimento humano ainda não disciplinavam essas transgressões. Sabiás, coleirinhos, melros e canários-da-terra eram aprisionados em gaiolas toscas ou elegantes, sem direito a alvarás de soltura. Capturados em arapucas ou alçapões, os pássaros passavam a residir naquelas gaiolas, para deleite e satisfação dos donos. “Donos” da sua liberdade e do seu destino.

Sabiás, coleiros, melros e trinca-ferros destinavam-se ao canto e, daquelas gaiolas de grades instransponíveis, na impossibilidade de lançarem o seu voo, lançavam a sua melodia. Para os donos, um canto de ostentação, para eles, prisioneiros do acaso, um canto de lamento.

Aos canários-da-terra eram reservados dois destinos: o canto, com aquela profusão de notas agudas e repicadas ou… a luta. Esses últimos eram os “canários de briga”.

A luta entre dois canários machos era um espetáculo e era assistida por numerosa plateia, que analisava cada ação de ataque dos oponentes que se agrediam com os bicos e as afiadas garras. A arena era uma gaiola de repartição separada ao meio por uma porta elevadiça. O duelo começava com o enfrentamento em separado, cada um em um lado da imensa gaiola, com trinados eloquentes de desafio. Após alguns minutos desse desafio e sob os olhares atentos da plateia ansiosa, a porta da repartição era levantada. Duas situações podiam ocorrer naquele momento: um dos canários se amedrontava e corria da briga, sendo perseguido dentro da gaiola pelo oponente. Era uma decepção para o seu dono. Um canário “corredor”, como era chamado, jamais voltaria a ser treinado para a briga. Mas, no segundo caso, quando os dois canários aceitavam a luta, o espetáculo durava um a dois minutos e tínhamos um vencedor. Se após alguns minutos a luta prosseguisse, era comum, por concordância mútua dos donos, estabelecer-se o empate.

Mas havia também, dentro do mesmo sistema, a luta entre “canárias”. Isso mesmo, as fêmeas também lutavam, e é aí que entra a história que dá título à crônica. Eu tive uma canária parda, bem maior do que as canárias comuns, que era imbatível nas lutas. Ganhava todas as lutas que disputava e sua fama espalhou-se pela cidade. Muitos meninos traziam canárias de briga de outros bairros para tentarem a vitória contra a minha invencível canária e propunham comprá-la, trocá-la por bons canários de briga ou cantadores, mas eu não abria mão daquela lutadora. Depois de algum tempo, ninguém queria mais desafiá-la. Foi aí que eu resolvi dar-lhe por companheiro um canário-da-terra com grandes dotes de luta. Acreditava que, da união dos dois, nasceriam canários imbatíveis. Foi a minha decepção. Ao abrir a porta de repartição para a união conjugal dos dois bichinhos, a violenta “canária parda” quase matou o pretenso companheiro. Só não o matou porque os separei a tempo. Só então descobri que a brava e imbatível “canária” não era, na verdade, uma canária, mas uma fêmea de Catatau.

Ganhamos todas as brigas, com ela se passando por canária parda. Nunca houve má-fé, nem de minha parte e nem da parte dela. Afinal, eu não sabia mesmo que ela era uma Catatau e quanto a ela, ninguém lhe perguntou se ela era canária. Coisas da adolescência na década de 50…

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