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Recordações

À Madalena

Ela não gostava que lhe chamassem de “bibliotecária”. Achava o termo vulgar e pouco ilustrativo da sua esmerada formação. Cursara Biblioteconomia em uma universidade federal, naqueles tempos em que aqueles centros de ensino superior, ainda não abastardados pelas cotas, guardavam ainda a qualidade e a imponência da “Universitas”. Por isso, gostava de ser chamada de “bibliotecônoma”, um nome mais estiloso para quem dominava a ciência da classificação e catalogação dos livros. Nesta função, Datinha (apelido familiar de Maria das Graças), mergulhava dentro daquelas obras e transitava por suas páginas com a segurança de quem dominava o assunto. A Biblioteca Nacional já era a maior e a mais conceituada do país e uma das grandes referências na América Latina e no mundo, e era ali que aquela jovenzinha de olhos vivos e penetrantes, com menos de 1,60m de altura, passava os dias em seu trabalho.

Datinha, com seus 26 anos, era muito diferente de uma intelectual estereotipada. Era avançada para aqueles idos da década de 70. À noite, andávamos ali pela orla de Copacabana, tomávamos um Cuba-Libre no Tip-Top da Constante Ramos e, depois, só nós dois sabíamos o destino da noite. Era um tempo mágico em uma cidade mágica. As noites eram crianças embaladas por nossos sonhos. Parecia que o destino nos reservava uma longa vida a dois, quando olhávamos aquela lua enorme refletida nas ondas calmas da praia do Leme. Mas a vida tem mistérios insondáveis e atalhos que nem sonhamos.

A cada mês eu vinha a Muriaé rever a família. Vinha na sexta-feira e voltava na noite de domingo. Revia alguns amigos, revisitava o Bar Oásis, ícone da nossa juventude, degustava um “San Raphael” ou um “Madeira R”, e quando menos esperava estava voltando ao Rio e a minha rotina diária. E Datinha lá… me esperando com o seu carinho e aqueles papos agradáveis sobre literatura que completavam a noite. Aquelas idas e vidas entre Muriaé e o Rio se repetiam, dividindo-me entre uma vontade de ficar e uma vontade enorme de voltar.

Mas os mistérios da vida nos surpreendem. Numa dessas viagens, conheci, na casa de meus pais, uma jovem pianista. Aqueles dedos longos e finos que percorriam as teclas daquele piano, menos do que as notas, tocaram o meu sentimento. E Datinha lá… me esperando com o seu carinho e aquelas aulas de literatura… Mas a melodia penetrava-me o espírito e o enchia de dúvidas. Aquela moça de cabelos negros como a noite, com um sorriso tímido e recatado, olhava para as pautas e para mim. Na semana seguinte eu voltei… e na outra também e saímos… e fomos ao Pilão e as cartas passaram a nos ligar e encurtar a distância que nos separava.

Durante três meses eu vivi a dúvida cartesiana entre a Datinha e o novo amor que nascia. Mas era impossível dividir a alma em duas e, de repente, guardei a Datinha num daqueles armários que se guardam recordações, até que se apagasse da minha memória como a chama de uma vela que se exaure.

Aquela moça de cabelos negros como a noite e aquele olhar profundo que tocou a minha alma no primeiro instante, continua ao meu lado há 43 anos. Seus cabelos já não são negros como eram, mas suas mãos, ainda que trazendo a marca dos anos, guardam a mesma beleza e suavidade quando me tocam e seus olhos guardam ainda (e como guardam) o recato e a timidez daquele primeiro dia.

Ah… se não fosse ela, eu não teria os filhos que tanto amamos e um neto que nos enche a existência de prazer e de esperança…

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