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Saturnino Ponto Com

Saturnino era chegado num computador. Com o dinheiro recebido de sua última demissão e umas economias, Saturnino comprara um Micro de 32 Mb de memória RAM, Fax Moden, impressora, etc., realizando o seu maior sonho. Não foi à toa que recebeu o apelido de “Saturnino Ponto Com”.

Todos os dias, quando voltava do seu trabalho de entregador, já no início da noite, postava-se frente à tela do seu micro. Aquela tela era uma janela para o mundo. Se na sua vida jamais viajara além de 30 quilômetros de sua cidade (quando ia visitar sua madrinha no Sítio Boa Esperança), ali no seu computador era diferente. Ali ele era um internauta, ali ele viajava pelo país e pelo mundo, conhecendo pessoas e lugares. Nesse ponto era um homem viajado, com um imenso capital cultural adquirido em suas idas e vindas virtuais.

Seu hardware não era lá essas coisas, mas dava para o gasto. Um equipamento modesto de apenas alguns Mb de memória RAM e outros “bichos” mais.

Saturnino distribuía cartões de visita com o seu e-mail impress, e ai daquele que chamasse seu e-mail de “endereço eletrônico”. Exigia fidelidade ao idioma de origem e rigor na pronúncia.

Há dois anos, “Saturnino Ponto Com” não namorava, isto é, não ficava com alguém. Seus encontros eram virtuais, suas amizades eram virtuais e nos chats que visitava, até o sentimento virtualizara-se. Já conhecia uma centena de Nicks, mas ainda não se prendera a nenhum. Talvez por falta de afinidades ou por não ter interesse em um relacionamento sólido. Assim mesmo, “Saturnino Ponto Com” viajava e viajava na virtualidade dos seus sonhos, procurando, quem sabe, uma felicidade virtual que pudesse completar e dar sentido ao seu ser solitário.

Conhecera Marias, Adrianas, Renatas e Helenas, que se diziam louras ou morenas, frequentadoras assíduas de chats, mas jamais sentira o perfume de uma delas, jamais tocara em uma delas. O toque mais próximo que tivera havia sido o toque frio do mouse que, sob seus dedos crispados, obedecia ao seu indicador impertinente, que era o seu órgão mais sensível.

Sonhava o sonho impossível de ter uma família virtual, com filhos virtuais, sogras e cunhados virtuais, que pudessem ser deletados (em caso extremo de incompatibilidade de programas, é claro).

Em sua imaginação, tecia imagens holográficas de pessoas e lugares e ali se instalava na quietude dos seus sonhos, vivendo a existência que não podia ter na sua dura realidade de entregador. Os psicólogos chamariam a isso de fuga, outros, de estratégia vital.

Um dia, o hardware do Saturnino enguiçou, como costuma acontecer com toda máquina. “Saturnino Ponto Com” tentou o “Enter”, o “Backspace”, o “Ctrl”, o “Alt” e até o “Caps Lock” (seu conhecimento de informática ainda era bem limitado). Tentou de tudo e não teve jeito. O “Astrogildo”, como ele chamava o seu computador, não deu nem sinal, travou todos os programas. O CPU do “Astrogildo” estava mudo e apagado. Saturnino, de repente, ficou sem meios de viajar, de percorrer os chats e papear com centenas de Nicks que conhecia. Desolado, Saturnino levantou-se da sua cadeira giratória e resolveu dar uma volta para “esfriar” a cabeça.

A noite era de estrelas brilhantes e uma lua de que nem se lembrava mais, prateava as folhagens e enchia de esperança o coração dos homens. Saturnino atravessava a pracinha do coreto, quando seu olhar se cruzou com aquele olhar de fogo que trouxe-o de volta à vida e encheu-lhe a alma de desejos… e aqueles não eram olhos virtuais. O que sentia bater agora dentro do peito não era o ruído do CPU, era algo diferente de tudo que havia sentido.

Saturnino se aproximou lentamente, aprumou os ombros, raspou a garganta e… teria dado tudo certo se “Saturnino Ponto Com” não tivesse dito para o pai da moça:

– O senhor permite que eu conheça o site da sua filha?

Ah… infelizmente o pai da moça não entendia nada de linguagem internáutica. O bofetão que Saturnino levou nada tinha de virtual…

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